TRANSPORTE COLETIVO ALTERNATIVO CLANDESTINO
PROCESSO nº. 22578579
INTERESSADO: Diretoria-Geral da Polícia Civil do Estado de Goiás
ASSUNTO: transporte coletivo alternativo clandestino
PARECER nº. 127/2003.
O Sr. Diretor-Geral da Polícia Civil do Estado de Goiás, face à alarmante crise por que passa o transporte coletivo alternativo em nosso Estado, com reflexos, em tese, penais, determina estudos acerca do tema, com vistas a definir as condutas típicas daqueles que, de forma irregular, pois sem nenhuma autorização do Poder Público, insistem em prestar à população goiana o serviço público de transporte coletivo alternativo.
Autuada, vieram os autos a esta Assessoria Jurídica para os estudos correspondentes e parecer.
É o breve relatório.
Passo, agora, à analise.
Ficou bastante acentuada, nos últimos tempos, a prática do trespasse da titularidade e da execução de determinados serviços públicos a terceiros, estranhos, ou não, à Administração Pública, que se incumbem de prestá-los à comunidade, conforme disciplinado pelo Estado. Assim, ao lado daquela que presta tradicionalmente de forma direta serviços públicos, aparecem estes terceiros, que, contratados pelo Poder Público, prestam determinados serviços públicos, porém, de forma indireta.
Duas, portanto, são as formas de oferecimento dos serviços públicos: a centralizada e a descentralizada. Ficando ao alvedrio da Administração Direta, isto é, por sua conveniência e oportunidade, utilizá-las, seja qual for. Aliás, esta é a inteligência do art. 175 da Constituição Federal, “verbis”:
“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.”
Na forma centralizada, a Administração Pública é, a um só tempo, a titular e a executora do serviço público. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o serviço vai da Administração Pública, que o executa e o explora, ao administrado, seu beneficiário último, sem passar por interposta pessoa. Na administração centralizada ou direta, os serviços e a competência para oferecê-los ou prestá-los estão distribuídos pelos diversos órgãos que compõem a entidade política por eles responsável. Entre nós, na esfera estadual, são as secretarias.
Diferentemente, na forma descentralizada, o serviço vai da Administração Pública, sua titular, ao administrado, seu beneficiário último, por meio de uma interposta pessoa jurídica, podendo ela ser privada, pública ou governamental, que o executa e o explora. A Administração Pública desfaz-se da execução, mas não da titularidade do serviço, ou seja, na descentralização têm-se duas pessoas: a entidade central e a descentralizada; a que outorga e a que é outorgada. Mantendo-se íntegra, inclusive, a hierarquia.
A descentralização pode se dar de duas formas: para pessoa pública e para pessoa privada; esta a que nos interessa, no momento, por isso, só a ela nos fixaremos.
A Administração Pública, sempre que deseja transferir a execução de certa atividade ou serviço público que lhe foi outorgado pelo ordenamento jurídico, utiliza-se de pessoas jurídicas. Tais pessoas são criadas, nos moldes do Direito Privado, pelos particulares (sociedade civil, comercial ou industrial) ou pela própria Administração Pública (empresa pública, sociedade de economia mista). Aquelas, as criadas pelos particulares, são permissionárias ou concessionárias de serviço público.
Assim, sem mais delongas, vamos à conceituação legal de concessão e permissão do serviço público, dado pelos incisos II e IV do art. 2º da Lei Federal nº 8.987/95, “verbis”:
“Art. 2º……………………………………………..
II – concessão do serviço público: delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;
………………………………………………………
IV – permissão do serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.”
O emérito Diogenes Gasparini, em sua obra intitulada Direito Administrativo, Editora Saraiva, 5ª Edição, página 281, conceitua concessão e permissão do serviço público da seguinte forma, “verbis”:
“…concessão de serviço público é o contrato administrativo pelo qual a Administração Pública transfere, sob condições, a execução e a exploração de certo serviço, que lhe é privativo, a terceiro que para isso manifeste interesse e que será remunerado adequadamente mediante a cobrança, dos usuários, de tarifa previamente por ela aprovada.”
“…O conceito que ofertamos para a concessão do serviço público vale para a permissão de serviço público, com uma só alteração: em lugar de contrato administrativo coloca-se contrato de adesão…” (sublinhei).
Destarte, fica muitíssimo claro que todo e qualquer serviço público a ser prestado por terceiros, mediante concessão e permissão, não deixa, sequer em um instante, de ser público, haja vista que ocorre, tão-somente, a descentralização da administração, ou seja, transfere-se a titularidade da atividade ou execução do serviço a uma pessoa interposta, jurídica ou física, dependendo, respectivamente, se decorrente de um contrato de concessão ou de permissão; isto é, entre a Administração Pública, titular do serviço público, e o beneficiário último, há o concessionário ou permissionário, titularizando a atividade ou executando o serviço, mas, em ambos os casos, sob o controle superior hierárquico da Administração Pública.
Não há como furtar-se, para bem entender a matéria, do conceito de serviço público. É por essa razão que cedo a palavra ao eminente Celso Antônio Bandeira de Mello, que, em seu artigo intitulado Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, publicado na Revista dos Tribunais, diz, “verbis”:
“…serviço público como sendo toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade fruível preponderantemente pelos administrados, prestada pela Administração Pública ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público, instituído em favor de interesses definidos como próprios pelo ordenamento jurídico.”
É o próprio Diogenes Gasparini, em sua obra já citada, pág. 250, quem comenta o conceito de serviço público, que transcrevo porque muito nos interessa, “verbis”:
“O conceito é amplo. Abarca as atividades de oferecimento de comodidades ou utilidades materiais (energia elétrica, telecomunicações, distribuição de água domiciliar), bem como as jurídicas (serviços cartorários), as fruíveis diretamente (transporte coletivo, coleta de lixo) ou indiretamente (segurança pública) pelos administrados de forma preponderante, ou pela Administração (serviços administrativos). A prestação é da Administração Pública (órgãos, agente e material) ou de seus delegados (concessionários, permissionários)…” (grifei).
Ora, fica muitíssimo claro que os permissionários ou concessionários do serviço público, especificamente do transporte coletivo alternativo, prestam serviço público à coletividade, e são, por conseguinte, equiparados, penalmente, a funcionários públicos, nos termos do art. 327, e seus parágrafos, do Código Penal, já com a redação que lhe foi dada pela Lei nº. 9.983, de 14 de julho de 2000, “verbis”:
“Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.
§ 2º. A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.”.
Para os efeitos penais, portanto, não é mister que o agente seja funcionário público em sua acepção restrita, pois o que é indispensável é que exerça função pública, que no dizer de Maggiore é “qualquer atividade que realiza fins próprios do Estado, ainda que exercida por pessoas estranhas à Administração Pública” (E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 8º Edição, Volume 4º, páginas 224 a 226).
Para o mestre Nelson Hungria “não é propriamente a qualidade de funcionário que caracteriza o crime funcional, mas o fato de que é praticado por quem se acha no exercício de função pública, seja esta permanente ou temporária, remunerada ou gratuita, exercida profissionalmente ou não, efetiva ou interinamente, ou “per accidens” (Comentários ao Código Penal, Volume IX, páginas 397/400, Forense). Sobre o tema, ensina ainda o mestre que, em face do Código – e é bom não olvidar-se que o art. 327 do Código Penal, quando de seus rutilantes ensinamentos, não havia sido alterado pela lei citada, nem mesmo pela Lei 6.799, de 23 de junho de 1980, que lhe acrescentou o § 2º –, funcionário público não é apenas o que serve à administração direta do Estado, senão também o empregado de entidades paraestatais (autarquias que gravitam na órbita da União, Estados-membros e Municípios), não passando estas, em última análise, de descentralizações da Administração Pública.
A doutrina e a jurisprudência dominantes têm considerado a equiparação daqueles que exercem cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, bem como daqueles que trabalham para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública, a funcionários públicos apenas com relação ao sujeito ativo do crime, e não para assim ser considerado quando sujeito passivo da infração; daí deduzir-se que não podem os funcionários públicos por equiparação legal ser vítima do crime de desacato, por exemplo. Estes são funcionários públicos enquanto sujeitos ativos do crime, mas não se lhes estende essa qualidade, quando sujeitos passivos do delito.
Pois bem, se aqueles que estão prestando serviço público, mais especificamente oferecendo à comunidade o transporte coletivo alternativo, contratados que foram regularmente pelo Estado, portanto, concessionários ou permissionários do serviço público, são considerados, para os efeitos penais, funcionários públicos, conclui-se, e não há espaço para outra ilação qualquer, que os que, irregular ou clandestinamente, prestam tais serviços, estão a usurpar o exercício de função pública, conduta esta que subsume-se ao crime do art. 328 do Código Penal, “verbis”:
“Art. 328. Usurpar o exercício de função pública:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Se do fato o agente aufere vantagem:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”
A conduta criminosa deste tipo penal, como se viu, é usurpar o exercício de função pública. Lexicologicamente, usurpar é tomar, arrebatar, apoderar-se, assenhorear-se de atribuições ou ofícios alheios. De acordo com a oração da lei, pratica a ação delituosa quem, indébita ou ilegitimamente, executa ato de ofício. Não basta fazer-se passar pelo ocupante do cargo (compreendendo-se aí também emprego ou função), intitular-se como tal, desde que não o exerça. Disse-o muito bem o Tribunal de Justiça de São Paulo, “verbis”:
“No crime de usurpação de função, há intromissão, no aparelhamento legal, de um intruso que se arroga prerrogativas de legítimo funcionário e, realmente, se lhe substitui na função. Não investido legalmente do cargo, emprego ou função, o intruso pretende que seu ato se insira e se integre no complexo dos atos funcionais legítimos e não corrompidos.” (RT 224/69)
É flagrante o cometimento da infração aqui comentada por aqueles que, ilegalmente ou clandestinamente, estão a oferecer à comunidade goiana o transporte coletivo alternativo, porque, assim agindo, usurpam o exercício de função pública, que, em nosso Estado, é exercida, de forma descentralizada, por concessionários ou permissionários daquele serviço público. Todos aqueles envolvidos na perpetração do delito (motorista, cobrador, proprietário do veículo, sócios de empresa contratada etc.), que, de qualquer modo, concorram para a sua realização, respondem, dentro dos limites de sua culpabilidade, pela prática criminosa.
O sujeito ativo do crime, na conformidade da epígrafe do capítulo em que figura o art. 328 do Código Penal, há de ser particular, o “extraneus”; mas a este se equipara quem, embora sendo funcionário público, não está investido na função de que se trate. E se o agente é autêntico titular da função, mas se acha suspenso dela por decisão judicial? O crime a configurar-se será o do art. 359 do Código Penal. Se, diferentemente, a suspensão foi decretada por ato administrativo, nada mais se poderá reconhecer que uma falta disciplinar (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, obra já citada, página 409; no mesmo sentido, E. Magalhães Noronha, Direito Penal, obra já citada, páginas 357-358).
A razão da majoração da pena em quantidade e qualidade reside em o agente auferir vantagem, isto é, obter ou conseguir vantagem ilegítima; não, porém, necessariamente fruir, pois a disposição não impede que a vantagem lograda se destine a outrem. Mas, se além de usurpar o exercício de função pública, o particular tira vantagem ilícita de tal fato, o elemento material do delito passa a ser o de usurpar o exercício de função pública e desta usurpação tirar vantagem evidentemente sempre indevida.
Sobre o assunto, porque bastante ilustrativo, transcrevo excerto das lições de Fernando H. Mendes de Almeida, em sua obra Crimes Contra a Administração Pública, Saraiva, página 171), “verbis”:
“A lei, é certo, não falou em vantagem indevida. Aliás, seria desnecessário fazê-lo, pois toda e qualquer vantagem direta, ou indireta, em gênero, ou em espécie, que venha a tirar do fato, é indevida, porque decorre de uma fonte indevida: fraude ou artifício que levou outro particular a dar-lhe e a origem de tal vantagem num fato que na origem e na sucessão contêm vício irremovível.”
É evidente que o combate à clandestinidade do transporte coletivo alternativo passa, em um dado momento, pela necessidade da repressão policial e, por conseguinte, da Justiça Criminal; entretanto, não se pode descuidar que a questão envolve também outros setores do Poder Público, tais como aqueles ligados às áreas tributárias e previdenciárias, por exemplo. Agora, não se pode esquecer que os trabalhadores do transporte coletivo alternativo, em sua maioria, são homens e mulheres de bem e estão no desempenho de suas funções, amparados em contratos legais e regulares, contra os quais não se deve haver repressão penal; porquanto, deverá a ação repressora, com zelo e atenção, separar o joio do trigo.
Ante o exposto, fica para esta Assessoria Jurídica que as condutas daqueles que insistem em praticar o transporte coletivo alternativo de passageiros de forma clandestina ou ilegal, auferindo, com isso, vantagem, subsumem-se ao tipo do art. 328, parágrafo único, do Código Penal, apenado com reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
É o parecer, “sub censura”.
ASSESSORIA JURÍDICA DA DIRETORIA-GERAL DA POLÍCIA CIVIL, em Goiânia, aos 02 dias do mês de abril de 2003.
Kílvio Dias Maciel
Delegado de Polícia
Titular da Assessoria Jurídica da Diretoria-Geral da Polícia Civil